sábado, 15 de agosto de 2015


A RELIGIÃO DO HOMEM CAÍDO
por R. J. Rushdoony.

Porque o homem foi criado por Deus, o homem não pode escapar do propósito criacional de Deus. Mesmo em sua rebelião e em toda a sua atividade revolucionária, o homem manifesta os propósitos de Deus, embora ele possa deformá-los muito. O homem busca criar um paraíso, exercer domínio, aumentar seu conhecimento, e, de muitas outras formas, manifestar aqueles aspectos da Imagem de Deus nele que governa-o em sua cultura e sociedade. Entre estes aspectos da cultura do homem que revelam os propósitos de Deus está a religião. Desde que o homem foi criado pra glorificar Deus e gozá-lo para sempre, o homem não pode fugir do fato de que é uma criatura religiosa. No estado de depravação, contudo, o homem busca uma fé religiosa apartada de Deus e em hostilidade a Ele.

A verdadeira religião é teocêntrica; a falsa religião é antropocêntrica. O salmista afirmou a diferença vividamente no Salmo 115:1-9:


1. Não a nós, SENHOR, não a nós, mas ao teu nome dá glória, por amor da tua benignidade e da tua verdade. 
2. Porque dirão os gentios: Onde está o seu Deus? 
3. Mas o nosso Deus está nos céus; fez tudo o que lhe agradou. 
4. Os ídolos deles são prata e ouro, obra das mãos dos homens. 
5. Têm boca, mas não falam; olhos têm, mas não vêem. 
6. Têm ouvidos, mas não ouvem; narizes têm, mas não cheiram. 
7. Têm mãos, mas não apalpam; pés têm, mas não andam; nem som algum sai da sua garganta. 
8. A eles se tornem semelhantes os que os fazem, assim como todos os que neles confiam. 
9. Israel, confia no Senhor; ele é o seu auxílio e o seu escudo.

O contexto deste salmo é uma situação onde Israel estava sendo escarnecida pela ausência de socorro, e por sua confiança no Senhor. [1] O único deus aceitável para esses escarnecedores era um deus que atendesse às suas demandas, que desse a eles toda a glória como seu poder cativo, ou um suserano subornado. Enquanto o salmista implora por libertação, e pela confusão do desprezo das nações pagãs para Deus (v.2), o seu grito enfático e choro aberto é que a glória seja do Senhor, nunca do homem.

Os ídolos das nações são descritos com desprezo. Deus, o Senhor reina no céu sobre todas as coisas: "fez tudo o que lhe agradou." (v.3). Nas religiões humanistas, o propósito dos deuses é agradar o homem; na religião verdadeira, Deus não é governado pelo homem, mas governa-o; em cada era e em cada situação, Ele faz o que lhe agrada.

Os deuses fabricados são mortos; "eles não podem sequer fazer o menor e mais inarticulado ruído, como os animais inferiores; muito menos falar como os homens." [2] O fato óbvio sobre os ídolos é que eles são desprovidos de vida e são criaturas sem significado. O  clímax do salmista é que "eles se tornem semelhantes os que os fazem, assim como todos os que neles confiam." (v.8) De acordo com Alexander, "Quão formidável agora, eles devem tornar-se tão impotentes e sem sentido como os deuses que eles adoram." Outro ponto precisa ser acrescentado: não apenas o destino futuro dos humanistas é esta impotência radical, mas eles são impotentes mesmo agora  em seu poder aparente. Porque Deus é o Senhor, todas as suas palavras somam apenas para uma frustração e impotência.

A futilidade da religião humanista ou antropocêntrica é que, embora o homem seja o problema, ela ainda procura sua resposta no homem. É como pedir a um assassino para ser um doutor, ou a um estuprador para guardar a virtude de uma mulher.

Os jornais dão-nos exemplos da fé religiosa humanista diariamente. Então, um grande jornal realizou uma análise de bem-estar por [Irvign] Kristol, que analisou "Ensaio sobre a pobreza" de Alexis de Tocqueville, de 1835. Tocqueville descobriu que o assistencialismo cresce mais rapidamente em países ricos. Além disso, porque países ricos são mais propensos a garantir riqueza e a ser mais liberais, eles trazem à cena a natureza pecaminosa do homem. De acordo com Tocqueville:


"Há dois incentivos para o trabalho: a necessidade de viver e o desejo de melhorar as condições de vida. A experiência tem provado que a maioria dos homens pode ser suficientemente motivado a trabalhar apenas pelo primeiro desses incentivos. O segundo é efetivo apenas com uma pequena minoria... Uma lei que dê a todos os pobres um direito a auxílio público, qualquer que seja a origem de sua pobreza, enfraquece ou destrói o primeiro estimulante e deixa apenas o segundo intacto."


A perspectiva de Tocqueville reflete a visão cristã do homem. Kristol imediatamente notou os pressupostos religiosos que separam-no de Tocqueville e citou-os claramente:


"Neste ponto, nós somos obrigados a pedir licença a Tocqueville. Tais conclusões sombrias, derivadas de uma menos do que benigna visão da natureza humana, não recomenda-se à imaginação política do século XX ou ao temperamento político americano. Nós não gostamos de pensar que nossos exemplos de compaixão social podem ter consequências sombrias - não por acidentalmente, mas inexoravelmente. Nós simplesmente não podemos acreditar que o universo é constituído dessa forma. 
Nós preferimos muito mais, se uma escolha deve ser feita, ter uma boa opinião da humanidade e uma pobre opinião de nosso sistema econômico." [4]

Se o homem é bom por natureza, o mal deve vir do "sistema" ou do ambiente; se o homem é um pecador, o mal deve vir do coração do homem. A questão é religiosa, e o assistencialismo é um plano humanista de salvação.

Para outro exemplo de fé humanista, deixe-nos ir até Tom Braden, que é profundamente preocupado com o declínio moral nos Estados Unidos durante os anos 60. Quem imaginaria nos anos 60 a violência e anarquia que nós temos testemunhado nos últimos dez anos, ele pergunta? "Perdemos nossa fé de que o homem pode contestar a verdade e daí redefini-la? Perdemos nosso senso de responsabilidade para com o próximo e para com a comunidade como um todo? Ou todos nós enlouquecemos?" A raiz do problema, Braden sustenta, é "o uso da desordem, ou da anti-lei, como uma arma," e " isto "está rapidamente tornando-se um problema em si mesmo." A resposta de Braden é reveladora:


"Talvez nós precisemos de um novo código moral ou de uma nova educação ou, como Henry Adams certa vez sugeriu, uma nova mente social. Cara geração de americanos lutou para alcançar e aplicar poder, e cada geração preocupou-se com o poder que isso criou. Mas em 1971, nós parecemos ser repentinamente confrontados com as complexidades no uso daquele poder que nós não imaginávamos mesmo 10 anos atrás. 
A menos que nós concordemos sobre uma moralidade que nos unirá na tarefa de lidar com eles, nós podemos acabar olhando pra trás, a 10 anos de agora, numa década que era violentamente coercitiva." [5]

Braden mostra-nos por que temos uma crise moral. Ele acredita que "homens racionais podem contestar a verdade e então redefini-la." Ele quer "um novo código moral," e ele acredita que os homens podem possivelmente "concordar sobre uma moralidade que nos unirá" e nos habilitará para lidar com nossos problemas. A raiz do problema moral é o humanismo, e a resposta de Braden é mais humanismo.

Sendo o homem um pecador, quando ele substitui a Palavra de Deus por uma religião do "faça-por-si-mesmo" e uma moralidade feita pelo homem, seu substituto torna-se pecado transformado em um sistema. As atividades revolucionárias e os movimentos do século XX, e da era moderna, foram intensamente religiosos e completamente humanistas. Seus resultados líquidos foram fazer cada homem seu próprio deus e lei. Não surpreendentemente, isso conduziu a um estatismo totalitário e ao que Braden chama de medidas "violentamente coercitivas" para evitar a anarquia.

Mas Braden não verá que seus próprios princípios produzem anarquia moral, a desordem e a anti-lei, que ele deplora. Para isso, ele precisaria abdicar de seu humanismo, e isto em princípio ele não fará. O problema com humanistas não é uma falta de inteligência mas uma cegueira voluntária desejável. Em sua jornada religiosa, o humanista nega-se a olhar além de si mesmo pra seu deus. Quanto mais ele intensifica sua jornada, mais ele torna-se, como os ídolos descritos pelo salmista, incapaz de falar, de pensar, ou de perceber a experiência. Não coincidentemente, o coração do misticismo, uma forma de religião humanista, é igualmente incapaz de falar, pensar, ou perceber a experiência. O místico pede pela exclusão do mundo externo, da doutrina, da revelação, e da experiência externa pela concentração total em um vazio interior. Os místicos hindus declaram, "Tu és Aquele", i.e., o místico é ele mesmo um com o poder último e é o poder último.

Para o humanismo, a consciência religiosa do homem e a psicologia do homem são a fonte real de conhecimento religioso e revelação. A verdadeira palavra vem do homem, e assim a experiência humana precisa ser desenvolvida. A religião então deixa de ser "Assim disse o Senhor," a Palavra de Deus, mas em vez disso torna-se, "Assim digo Eu," a palavra de acordo com o homem.

Porque o humanismo atribui a palavra da verdade para o homem, ela precisa necessariamente atribuir à fonte de revelação o poder de encontrar sua própria palavra revelada. Se o homem humanista diz que a resposta para os problemas do mundo é amor e pacifismo, ele então acredita logicamente que sua palavra revelada, amor, pode também superar a guerra e o ódio e inaugurar a paz mundial. O mundo do homem torna-se a palavra de poder porque ele é o mundo da verdade. A capacidade de auto-reforma é assumida como grande e até ilimitada. Na frase de Boston, está implícito em tal pensamento que o homem pode "pular fora do seio de Dalila, para o seio de Abraão." [6] Mas o pecador não pode reformar a si mesmo para agradar Deus, apenas para agradar a si mesmo. "A vontade não-renovada é totalmente perversa, em referência ao maior e principal finalidade do homem. A finalidade principal do homem natural não é o homem, mas si próprio." [7] Para tais homens, Deus é "o meio, e o eu é sua finalidade; sim, sua finalidade principal," [8] se eles concordarem com Deus em seu pensamento de qualquer maneira.

A religião do homem humanista agrava e promove sua Queda, e ela intensifica e desenvolve sua depravação.

1. H.C. Leupold, Exposition of the Psalms (Columbus, OH: The Wartburg Press, 1959), 798.
2. Joseph Addison Alexander, The Psalms, Translated and Explained (Grand Rapids, Zondervan, reprint of 1864 edition), 470.
3. Ibid.
4. Irving Kristol, "Welfare: Best Intentions, Worst Results," Los Angeles Times, Sunday, August 1, 1971, Section I, p. 1; the article was originally published in The Atlantic.
5. Tom Braden, "What We Have Lost in the Past Ten Years," in Woodland Hills Chronicle, Thursday, July 1, 1971, Citizens News Publications, Canoga Park, California.
6. Thomas Boston, Human Nature in Its Fourfold State, 53.


(Artigo extraído de "Revolt Against Maturity: a Biblical Psychology of Man", pág. 134-139.)

Rev. R. J. Rushdoony (1916-2001) foi o fundador do Chalcedon e um teólogo influente, especialista na relação entre Igreja e Estado, e autor de numerosos trabalhos relacionados à aplicação da Lei Bíblica na sociedade.

Tradução por Antonio Vitor.

Essa tradução foi autorizada por Mark Rushdoony, filho de Rousas John Rushdoony.

Soli Deo Gloria.

Um comentário:

  1. Graça e Paz, Antonio! Tudo bem?

    Estou lendo com certa frequência o teu blog e estou impressionado pelo alto nível dos textos aqui traduzidos. Os do Rushdoony são meus favoritos!

    Continue com esse excelente trabalho. Precisamos de mais divulgação sobre a Teologia Reformada no Brasil!

    Forte abraço, cara! Tudo de bom!
    Deus te abençoe!

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