terça-feira, 29 de novembro de 2016

OS EFEITOS IMEDIATOS DA REFORMA PROTESTANTE



OS EFEITOS IMEDIATOS DA REFORMA PROTESTANTE
por Antonio Vitor.

O último milênio tem sido de constante embate entre a igreja e o estado. Fora desse contexto, é impossível entender algumas afirmações extravagantes e constrangedoras de papas em bulas como Dictatus Papae e Unam Sanctam; os papas reagiam à constante tentativa do poder secular de controlar a igreja. E de fato, houve um lento e constante processo de sacralização do poder do rei durante a Baixa Idade Média.

Nos séculos anteriores à Reforma, especialmente depois do Concílio de Constança, o poder da igreja foi cada vez mais neutralizado pelo poder do imperador. O Vaticano tornou-se cada vez mais um centro cultural, sujeitando-se à ascensão do Renascimento, e cada vez menos ousou desafiar a autoridade secular; tornou-se uma igreja pragmática, cada vez mais sincrética e influenciada pela força do pensamento pagão que insinuava-se. O Imperador Maximiliano I esperava juntar o poder secular e espiritual sobre sua própria pessoa. As universidades eram palcos de revoltas; seitas, uma substituição da moralidade pela moda, estética e técnica começou a criar raízes. Erik von Kuehnelt-Leddihn, intelectual católico romano austríaco, vem concordar com os intelectuais protestantes e reconhece a Reforma Protestante como uma reação monástica  tardia ao Renascimento e ao Humanismo.


"É importante lembrar, contudo, que a Reforma, ao contrário de um conceito obsoleto ainda sobrevivente em países de língua inglesa encontrando seu caminho em filmes e livros didáticos, não foi o começo do liberalismo (verdadeiro ou falso), nem qualquer coisa parecida com o cumprimento do Renascimento, mas uma reação monástica tardia contra o humanismo e o espírito da Renascença. Para Lutero, a Renascença (não menos do que o Humanismo) era um compromisso proibido entre Cristianismo e paganismo. (...)Porque a Reforma foi uma reação contra o humanismo e a Renascença, nós não deveríamos nos espantar que a Idade Média, em um certo sentido, tenha continuado no mundo reformado.” ["From de Sade and Marx to Hitler and Marcuse",pg. 55.]

O historiador católico romano Christopher Dawson reconheceria o mesmo efeito: a Reforma significou uma manutenção de 200 anos do modo de vida medieval, tão afetado pelo Renascimento.


“O avanço vitorioso da cultura da Renascença foi consideravelmente atrasado pela revolução religiosa representada por Martinho Lutero. O efeito da Reforma alemã foi a absorção da atenção e das energias a respeito de questões religiosas e a criação de desconfiança na razão humana. De fato, como disse Ernst Troeltsch, foi um retorno a modos de pensar medievais que produziram uma renovada preponderância do espírito medieval por dois séculos.” [“A Divisão da Cristandade”,pg. 98.]

Nesse ponto, paralelamente, o professor Nelson Lehman da Silva reconhece que “os movimentos de reforma dos inícios dos séc. XVI, eminentemente representados por Martinho Lutero, também foram deflagrados como tentativas de desvencilhar a religião dos negócios mundanos e de voltar à original ideia cristã de ‘Duas Cidades’. Ainda que aqueles movimentos tenham eventualmente traído suas motivações iniciais, constituíram-se num último esforço de recuperação da distinção agostiniana.” [“A Religião Civil do Estado Moderno”, pg. 101.]

Parece, contudo, haver uma grande dificuldade para entender, entre os aspirantes a intelectuais, a realidade concreta e as dificuldades que envolveram os movimentos de Reforma. Na Suíça, poucos têm consciência da luta enfrentada pela igreja contra os magistrados civis, que quiseram aproveitar-se da Reforma para aumentar o próprio poder. Embora fosse convidado pela cidade como conselheiro, Calvino sofria tentativas de controle pelos magistrados, tendo sido, inclusive, expulso da cidade de Genebra por três anos. O conflito entre a Igreja de Genebra e os Magistrados torna-se ainda mais evidente quando lemos que, logo depois da morte de Calvino (e durante toda a estadia do reformador na cidade também), os Magistrados exigiram para si o direito de excomunhão, em virtude da inconformidade da teoria da relação entre Estado e Igreja de Calvino com as estruturas sociais existentes. Para Calvino, tal direito cabia à Igreja, enquanto os Magistrados preferiram ficar com a opinião de outros reformadores como Zwínglio. Como Richard C. Gable escreveu:


“Em setembro de 1548, o Conselho da cidade determinou que os pastores podiam apenas exortar o povo, mas não excomungá-lo. Em dezembro, o Conselho prosseguiu em suas tentativas de usurpar o poder dando a Guichard Roux a permissão de receber a Ceia do Senhor, após ter sido proibido de fazê-lo pelo Consistório. O próprio Calvino foi admoestado pelo Conselho no dia 24 de setembro de 1548 por causa de uma carta que tinha escrito, criticando os magistrados de Genebra. Após vários protestos e esforços dos pastores, o Conselho finalmente concordou, em 24 de janeiro de 1555, em conceder ao Consistório os direitos que lhe cabiam conforme o estabelecido pelas Ordenanças Eclesiásticas de 1541. Basicamente, as Ordenanças Eclesiásticas estabeleciam o padrão pelo qual a Igreja funcionaria. Foram estabelecidos o horário e o número de cultos na cidade, bem como a frequência dos pastores aos encontros e outras regulamentações, tais como a excomunhão.” [“Calvino e Sua Influência no Mundo Ocidental”, pg. 90.]

O mesmo conflito teve a Inglaterra como palco, quando os puritanos cada vez tornaram-se mais marginalizados da uniformização requerida pelo estado. Finalmente, eles apoiaram o Parlamento para depois serem usados por eles. No fim da Guerra Civil, os puritanos tiveram de conformar-se com a secularização. Mas de todos os efeitos, um particularmente interessante foi o percebido pelo católico Leopold Ranke. Para ele, a Reforma Protestante, seguida pela Contra-Reforma, tornaram possível a re-cristianização da Europa depois de dois séculos de intensa decadência religiosa.


“Não houve período em que os teólogos tenham sido mais influentes do que naqueles no fim do século XVI. Eles sentavam nos conselhos dos reis, e discutiam assuntos políticos do púlpito na presença de todo o povo – eles dirigiam escolas, controlavam esforços de aprendizado, e governavam o alcance da literatura. (...) Talvez possa ser afirmado que a violência ansiosa com que opuseram-se um ao outro, o fato de que cada uma das duas grandes divisões encontrou seu antagonismo em seu próprio corpo, essa era a causa da crescente e penetrante influência.” [“The History of the Popes”,pg. 42-43.]

A Reforma foi, finalmente, um contra-peso à secularização. A essência do Iluminismo encontrou nela sua maior adversária. Enquanto o Iluminismo estabeleceu o homem como centro de todas as coisas, a Reforma, especialmente a calvinismo, foi radicalmente teocêntrica; enquanto o Iluminismo encontrou um ideal na potência da razão humana; a Reforma declarou a influência da Queda na razão do homem; enquanto o Iluminismo buscou cada vez mais um mundo criado pelo homem e adaptado à “natureza”, a Reforma trouxe de volta, em termos dooyeweerdianos, o motivo religioso básico da Criação-Queda-Redenção. Nietzsche chegou a escrever:


“Se Lutero tivesse sido queimado, como Huss, o início do Iluminismo teria ocorrido um pouco antes, e mais esplendidamente do que podemos imaginar agora.” 

Mas não apenas à secularização. A Reforma também teve um efeito contrarrevolucionário, quando a Alemanha e outros países ameaçavam ser reduzidos a conflitos revolucionários por seitas que desejavam estabelecer o Reino de Deus à força. Esse foi o caso das Guerras Camponesas, onde Lutero apoiou príncipes católicos e protestantes a católicos a que sufocassem as revoltas promovidas pelos anabatistas liderados por Thomas Muntzer. Muntzer, um ex-luterano, estudado até por Engels e outros revolucionários marxistas, tinha ideias muito estranhas, quase ateístas. Ele liderou um grupo já existente naquela região, os hussitas-taboritas, uma facção que desenvolveu-se a partir do movimento iniciado por John Huss um século antes, e que explodiu após sua morte na fogueira pela ordem do império. Huss, a despeito de opiniões corretas, tinha parte de seu pensamento moldado por tendências igualitaristas e populistas, nunca aceitas por Lutero. A raíz dessas ideias está no movimento franciscano radical, que anteriormente apoiou e influenciou John Wycliff, que, por sua vez, influenciou Huss. Os taboritas liderados por Thomas Muntzer acabaram atacando castelos, matando ricos, confiscando propriedades, além de outras práticas condenáveis, numa versão que precedia a atual teologia da libertação. Na Suíça também, uma outra onda anabatista, extremamente perfeccionista, foi um desafio para Calvino. Eles desejavam a separação total da igreja dos assuntos políticos e para eles Calvino escreveu o último capítulo do Volume IV das Institutas.

É muito importante para a Cristandade entender as razões pelas quais, depois da Reforma, o cristianismo voltou a sofrer. Que Deus possa iluminar sua igreja nessa tarefa e eu espero trazer essa questão à discussão num futuro próximo.

domingo, 18 de setembro de 2016

PEREGRINOS DE PLYMOUTH: SOCIALISTAS OU PIONEIROS DA LIBERDADE?



[Nota: O texto a seguir, em grande medida, é apenas uma adaptação do texto do dr. Paul Jehle, "Economic Liberty in America: a Legacy of the Pilgrims"com algumas informações adicionais que julguei úteis.]

Alimenta-se o mito de que os peregrinos que trabalharam e fundaram a colônia de Plymouth, onde hoje fica o estado de Massachusetts, eram socialistas. A verdade, contudo, é outra. Além de não terem sido, por natureza, socialistas, os peregrinos de Plymouth lançaram algumas das pedras de fundação da liberdade americana. De acordo com o Dr. Charles Wolfe, historiador dos Peregrinos, citado pelo Dr. Paul Jehle [1], a partir de insights providenciais como consequência de seu compromisso com as Escrituras, eles deram seis importantes passos para a liberdade:

“Me ocorreu que eles (os Peregrinos) tomaram seis passos corajosos para a liberdade, que esses são passos que cada geração de Americanos deve continuar tomando... que junto a estes seis aspectos da liberdade, resulta a aplicação do... auto-governo cristão.”[2]
A ORIGEM

Os Peregrinos de Plymouth eram Congregacionalistas separatistas que fugiam da perseguição religiosa na Inglaterra. As pressões começaram na vila de Scrooby, na Inglaterra, quando, em 1607, o Arcebispo Tobias Matthew aprisionou muitos membros da congregação, que saiu daquele país dois anos depois em direção a Leyden, na Holanda. Scrooby era uma comunidade agrícola e eles tiveram dificuldade para adaptarem-se à sociedade holandesa. Mas a perseguição continuou quando, em 1618, autoridades inglesas foram até Leyden prender William Brewster por suas críticas ao Rei da Inglaterra e à Igreja Anglicana. Tais eventos impulsionaram a saída da congregação da Holanda.

Em 1619, eles conseguiram a oportunidade de viajar para o Novo Mundo através da London Virginia Company e para isso tiraram um empréstimo de sete mil libras pelas mãos dos “Aventureiros”, mercadores que buscavam lucro nas colônias. Foi nesse momento que desenharam-se os problemas contratuais que levariam a sua experiência dolorosa, em virtude dos desacordos entre a congregação e os “Aventureiros”.

O CONTRATO

Os Peregrinos só podiam pagar sua dívida através do trabalho. O contrato, depois de muita discussão, só garantia lucro aos Aventureiros, não às famílias da igreja. O acordo requeria inicialmente a divisão dos lucros, mas os Peregrinos insistiam na propriedade privada de suas casas, jardins e terras em que eles desenvolveriam seu trabalho. [3] Esse acordo foi mudado no último minuto por Thomas Weston e Robert Cuchman, o agente dos Peregrinos. William Bradford descreve isso em “Da Plantação de Plymouth” (Of Plimoth Plantation):

As maiores e principais diferenças entre aquelas e as condições anteriores firmam-se em dois pontos; que as casas, e as terras trabalhadas, especialmente jardins e lotes de casas, deveriam permanecer integralmente indivisas para os agricultores até o fim de sete anos. Em segundo lugar, que eles [os agricultores] deveriam ter dois dias na semana para o trabalho privado e de suas famílias, para maior conforto próprio e de suas famílias, especialmente os que tivessem famílias”. [4]

Fica claro, portanto, que os Peregrinos não eram socialistas por natureza; sua “experiência socialista” lhes foi forçada. Tudo seria “comum” até 1627. Em vez de trabalharem dois dias para o lucro privado, essa pequena liberdade lhes foi restringida para um dia. A desconfiança quanto ao mercado e a rejeição ao lucro eram predominantes na Inglaterra. [5]

A VIAGEM

Antes de sair da Inglaterra, o segundo navio, Speedwell, precisou de reparos e antes do chegar ao destino acabou sendo vendido por um preço muito menor do que o usado para consegui-lo. Alguns abandonaram a viagem e outros tripulantes embarcaram por conselho dos Aventureiros para auxiliarem no trabalho na colônia; todos espremidos com os suprimentos no outro navio, Mayflower, atrasando a partida, que se deu em setembro de 1620, com mais de 100 passageiros.

Por alguma razão, o navio Mayflower não aportou na Virginia e eles foram conduzidos a Plymouth, na Nova Inglaterra, chegando ao Cape Cod em novembro de 1620. Segundo Earle E. Cairns [6], isso foi providencial, pois na Virginia eles teriam sido perseguidos como na Inglaterra.
Antes mesmo de deixarem o navio, os colonos escreveram o primeiro documento de governo da colônia, o Mayflower Compact, assinado por 41 separatistas (homens), segundo os moldes do governo congregacionalista. Eles desembarcaram depois de dois dias, tendo permanecido no domingo para o culto e orações. Eles finalmente chegaram a Plymouth em dezembro.

No primeiro inverno, metade dos 102 passageiros do grupo original de peregrinos morreram. Apenas 4 mulheres adultas sobreviveram para formar a comitiva de 53 peregrinos que comemoraram a festa da colheita em 1621 com 90 índios nativos, que serviu como símbolo para uma importante tradição americana, o Thanksgiving (traduzido no Brasil como “Dia de Ação de Graças”). Um Tratado de Paz foi feito com os nativos para proteger suas relações como uma extensão dos princípios Pactualistas vistos no pacto da igreja em Scrooby e no pacto social de Mayflower. Os Peregrinos não teriam sobrevivido sem a ajuda providencial do índio Squanto, que anteriormente (1614) foi levado pelo explorador Thomas Hunt, passando cinco anos na Europa, primeiro como escravo de monges espanhóis e depois indo para a Inglaterra, retornando em 1619. Por essa razão, Squanto dominava o inglês relativamente bem. Squanto ensinou-os a fertilizar o solo da Nova Inglaterra.
No ano seguinte, a companhia mostrou-se desleal. Quando o navio Fortune desembarcou no fim de 1621, seus 36 passageiros não tinham comida suficiente para seu sustento. Bradford diz que:

“Eles nunca tiveram suprimento de mantimentos mais tarde (mas que o Senhor proveu de outra forma), já que tudo o que a companhia enviava era sempre muito pouco para as pessoas que trouxeram.” [7]

UM PASSO PARA A LIBERDADE ECONÔMICA

Na primavera de 1623, como cita o Dr. Paul Jehle, Bradford, como governador de Plymouth, entendeu que “a menos que algo fosse feito para torná-los produtivos e auto-suficientes, eles pereceriam.”  Segundo Jehle, “a análise de Bradford, em conselho com os outros, demonstra o raciocínio bíblico e a aplicação da Escritura”.

“Então eles começaram a pensar como eles poderiam produzir tanto milho quanto pudessem, e obter uma colheita melhor do que a que fizeram, para que eles não definhassem na miséria. ... O Governador (com o conselho do maior chefe dentre eles) consentiu que eles deveriam produzir milho, cada homem para seu particular, e, nesse assunto, confiar-lhes. ... E então nomeou a cada família uma parcela da terra, de cordo com a proporção de seus números... Isto foi muito bem sucedido, porque fez as mãos muito industriosas, ... As mulheres [anteriormente restringidas do trabalho] agora foram voluntariamente para os campos, e levaram seus pequeninos consigo para colher milho; de quem antes alegar-se-ia fraqueza e inabilidade; e que a quem se tivesse compelido julgar-se-ia como grande tirania e opressão.” 
“A experiência que se teve nessa condição e curso comuns, tentada por vários homens e entre pessoas piedosas e sóbrias pode demonstrar a vaidade de conceitos como os de Platão e outros antigos, aplaudidos por alguns mais recentes, segundo os quais a tomada de propriedade e a distribuição em comunidade de bens os faria felizes e produtivos; como se eles fossem mais sábios do que Deus. Porque essa comunidade (tão longe quanto estava) gerou tanta confusão e descontentamento e retardou o empreendimento que seria para seu benefício e conforto. Donde os homens jovens, que eram mais hábeis e dispostos para trabalho e serviço, lamentavam por ter de trabalhar para as esposas e filhos de outros homens sem qualquer recompensa. O forte não tinha mais na divisão de mantimentos e roupas que aquele que era fraco e inabilitado para fazer um quarto do que ele podia; isso era julgado como injustiça. O experiente e aperfeiçoado era classificado e igualado em trabalhos e mantimentos, roupas, etc., com o tipo mesquinho e jovem, julgava-se como indigno e desrespeitoso para com eles. E para as esposas serem comandadas para serviços de outros homens, como temperar sua comida, lavar suas roupas, etc., eles consideraram como um tipo de escravidão, nem poderiam muitos maridos tolerar isso.” 
“No ponto em que todos eram iguais, fazendo tudo igualmente, julgando-se nessa condição, e um tão bom quanto o outro; e então, se isso não cortou aquelas relações que Deus estabeleceu entre os homens, fez pelo menos com que diminuísse muito o respeito mútuo que deveria ser preservado entre eles. E teria sido pior se eles tivessem sido homens de uma outra condição. Que ninguém negue que essa é a corrupção do homem. Eu respondo, vendo que todos os homens têm essa corrupção em si, Deus em sua sabedoria viu outro curso mais adequado para eles.” [8]

É interessante notar a consciência de Bradford da origem de tais ideias em "Platão e outros antigos", reconhecendo suas bases não-bíblicas. Dr. Jehle afirma que Bradford identifica muitas razões pelas quais o socialismo e o comunismo elementar não funcionaram, mesmo entre pessoas piedosas, donde ele deduziu os seguintes “ingredientes de liberdade econômica” do discurso de 1623.

“1. Em uma propriedade comum de terra e trabalho, pessoas tornam-se preguiçosas, evadindo-se do trabalho, de forma que a propriedade privada deve embasar a liberdade econômica.
2. Sob o socialismo, pessoas tendem a inventar desculpas para não trabalhar, então o lucro privado é o ingrediente-chave em uma economia livre.
3. Convivência comunal gera descontentes, porque todos tendem a querer o que os outros têm, mas recusam-se a trabalhar por isso; então o bem-estar deve ser voluntário (caridade privada) antes de forçada (caridade regulada pelo governo).
4. O Socialismo é construído sobre o orgulho e presumiu uma igualdade externa em uma aberta ou ignorante negação do plano de Deus na Bíblia de forma que as diferenças entre jovens, adultos, experientes não são respeitadas. Uma economia livre é construída, em contraste, sobre o respeito e dignidade das diferenças individuais.
5. Embora alguns pensem no lucro como um motivo corrupto, é imperativo que se veja que a natureza humana é a verdadeira corrupta, incluindo aqueles que têm função no governo. O livre mercado, em contraste, é construído sobre incentivo pessoal e interesse próprio no intuito de sobrepujar a natureza corrupta de alguém.
6. Finalmente, o desenho de Deus para a economia descansa sobre a escolha voluntária, que é muito mais produtiva que a coerção do governo e a redistribuição de bens.”

Dr. Jehle continua dizendo que “Bradfort acrescenta uma sétima característica para o sucesso de uma economia livre. Ele afirma que os Peregrinos precisavam ‘descansar na Providência de Deus... orar que Deus lhes daria o pão diário.’ Depois da repartição de terra entre as unidades familiares, seguiu-se uma seca, ameaçando toda a plantação sob seu novo sistema voluntário. Diante disso, escreve Bradford, “[eles] separaram um dia solene de humilhação, para buscar o Senhor através de humilde e fervorosa oração, nesta grande angústia.” O governador relata que Deus “agradou-se em dar-lhes uma graciosa e rápida resposta, tanto para a própria admiração quanto para a admiração dos índios que viviam entre eles. Por toda a manhã, e pela maior parte do dia, o clima estava limpo e muito quente, e nem uma nuvem ou sinal de chuva era visto; mas ao anoitecer, começou a escurecer, e pouco depois a chuva veio com tão doce e gentil vigor que deu-lhes causa para regozijar e agradecer a Deus. Ela veio sem vento ou trovão ou qualquer violência, e paulatinamente em tal abundância que a terra estava completamente molhada e encharcada com ela. ... Por cuja misericórdia, em tempo oportuno, eles também separaram um dia de ação de graças.” [9] Foi depois desse dia de oração que Hobbomock, um nativo que vivia na plantação, converteu-se. E por volta de 1694 havia dias tradicionais, para Peregrinos e puritanos, de humilhação, oração e jejum, seguidos por dias de ações de graças, sempre durante a primavera (práticas que não pararam até 1894). Os tópicos dessas proclamações anuais incluíam uma petição a Deus por prosperidade econômica. E de acordo com Dr. Wolfe, a evidência da oração estava nos frutos, que foram a multiplicação da produção, ano por ano, em três vezes: em 1621, 26 acres; em 1622, 60 acres; em 1623, 184 acres. [10] Em vez de passarem necessidade eles mesmos, eles começaram a emprestar suprimentos para comunidades necessitadas em uma base regular, como Deus promete na Escritura em Deuteronômio 28:12 quando diz que “O Senhor te abrirá o seu bom tesouro, o céu, para dar chuva à tua terra no seu tempo, e para abençoar toda a obra das tuas mãos; e emprestarás a muitas nações, porém tu não tomarás emprestado.”

CONCLUSÃO

Diante de um estudo nas fontes primárias, portanto, fica claro que os Peregrinos de Plymouth não eram socialistas por natureza. Seria adequado entender, para outros fins, a diferença básica – não sobre esse assunto - entre os congregacionalistas separatistas e outros grupos puritanos que também migraram para os EUA, mas o presente ensaio não é adequado para isso. Até aquele momento, como explica Gary North (membro durante muitos anos do Mises Institute nos EUA), os puritanos ainda não haviam se dedicado a aprofundar uma visão bíblica das questões econômicas porque ainda não tinham sido forçados a isso. Em grande medida, até aquele momento eles aceitaram a regulação governamental desses assuntos e padrões medievais de “preço justo” e “teto salarial”, simplesmente porque era o que existia em sua época, como herança do período medieval -fato que católicos romanos conservadores evitam expor, escondendo-se sempre atrás dos acertos dos escolásticos tardios Para notar essa confusão medieval, basta lembrar que, não coincidentemente, as ordens monásticas mais importantes da Baixa Idade Média eram as ordens mendicantes e que de dentro do franciscanismo (a ala dos “franciscanos espirituais”) brotou forças comunistas.  Influenciados pelos conceitos de virtude do helenismo, o lucro e os “interesses econômicos” eram vistos muito negativamente entre os cristãos até a Reforma, até mesmo entre os valiosos Pais da Igreja.  Calvino, por outro lado, embora não tenha se dedicado a criar uma teoria econômica, deu valiosa contribuição para o assunto tentando libertar o cristianismo de seu simbionte helênico. Como exemplo clássico, há a interpretação correta da lei da usura, tão castigada pelos Pais da Igreja e cujas consequências nefastas afetam o Ocidente até hoje.

Segundo o Dr. Wolfe, os seis passos para a liberdade feitos por aqueles Peregrinos foram:

1. Liberdade Espiritual: o reconhecimento de pecado pessoal e a conversão a Cristo.
2. Liberdade Religiosa: o rompimento da igreja financiada pelo estado e a busca de uma igreja livre baseada em um pacto.
3. Liberdade Política: o Mayflower Compact.
4. Defesa da Liberdade: sua disposição em construir um muro para proteger a plantação.
5. Liberdade Econômica: o rompimento com o modelo de contrato inicial.
6. Liberdade Constitucional (1636): na sua Constituição, protegendo suas liberdades.

A colônia de Plymouth foi muito importante para a formação da cultura americana. Tivessem os seus herdeiros antes resistido em sua fidelidade doutrinária, os EUA talvez enfrentassem menos problemas hoje. Aquela experiência, somada depois à vinda de outros grupos puritanos, fez da Nova Inglaterra a região mais resistente ao secularismo humanista no país. Que sirva-nos de inspiração para uma organização cristã mais consciente e para a Glória de Deus.

NOTAS:
1. Paul Jehle, “Economic Liberty in America: a Legacy of the Pilgrims”.
2. Charles Hull Wolfe, Pilgrim Paradigm for the New Millennium, Letter from Plymouth Rock, Vol. 23, Issue 1, January/February, 2000, 2, Plymouth Rock Foundation, Plymouth, Massachusetts-www.plymrock.org.
3. Paul Jehle.
4. William Bradford, Of Plimoth Plantation, edited by Samuel Eliot Morison (New York:  Alfred A. Knopf, 1991), 41. Citado por Paul Jehle.
5. Gary North, Puritan Economic Experiments (Tyler, TX: Institute for Christian Economics, 1988), 8., citado por Paul Jehle.
6. Earle E. Cairns, “O Cristianismo Através dos Séculos”, 148.
7. Bradford, 102. Citado por Paul Hehle.
8. Ibid. 120-121.
9. Ibid., 131-132.
10. Wolfe, Paradigm, 4. Citado por Paul Jehle.

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016

O PARAÍSO DAS MULHERES por R. J. Rushdoony



 

O PARAÍSO DAS MULHERES

Por R. J. Rushdoony



A calúnia muda sua base sem demora, porque ela está mais preocupada com o que vai machucar do que com a verdade. Em eras diferentes, acusações diferentes machucam mais. O que em um período pode ser uma acusação dolorosa pode se tornar uma honra em um outro dia.


Isso era certamente verdade de Calvino, e da Genebra nos dias de Calvino e no seu tempo de influência. Como Gilliam Lewis e Roger Stauffenegger pontuaram, a Genebra de Calvino ficou conhecida como “o paraíso das mulheres”. ("Calvinism in Geneva in the Time of Calvin and of Beza (1545-1605)," in Menna Prestwich, ed.: International Calvinism 1541-171.5, p.49. Oxford, England: Clarendon Press, [1985] 1986.) Havia boas razões para isso. Calvino foi um forte defensor dos “direitos das mulheres”. Sob sua liderança, os consistórios da igreja foram atrás dos abusadores domésticos. Eles processaram guardiões que desapropriaram fundos de pensão de órfãos e viúvas. Esposas abandonadas foram protegidas, e assim por diante. Prestwich referiu-se à atração do calvinismo para as mulheres nessa área ("Calvinism in France, 1555-1629," in ibid., p. 96.)


Naquela era, e por séculos anteriores, homens e mulheres prósperos e poderosos contraíram matrimônio com muitas jovens mulheres e homens. As famílias dos jovens consentiam com esses arranjos por suas vantagens pessoais. Calvino sentiu profundamente que esses casamentos não deveriam ser permitidos. Em janeiro de 1557, o Consistório dissolveu o casamento entre uma mulher com “mais de 70 anos” e um homem de 27 ou 28. (Philip E. Hughes, ed: The Register of the Company of Pastors of Geneva in the time of Calvin, p. 321. Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1966.) Leis foram publicadas para proteger ambos homens e mulheres no casamento. Para evitar fraudes, muitas leis foram estabelecidas. Assim, “estrangeiros vindos de um país distante” não tinham permissão de casar em Genebra antes que uma cuidadosa investigação sobre seu passado e sua família fosse feita. (Hughes, p. 75.) Uma mulher perseguida por sua fé podia legitimamente deixar seu marido. (Hughes, p. 197.)


Seria um erro dizer que os pastores de Genebra sempre foram sábios em julgamentos de casos envolvendo mulheres. O que está claro é que a Genebra Calvinista era vista em seus dias como “o paraíso das mulheres” por causa da receptividade de Calvino e outros para seu empenho e necessidade de justiça. Havia uma razão para essa atitude. Ela era o reavivamento do Velho Testamento como uma parte inseparável da Bíblia; o Novo Testamento era lido como uma parte essencial do Velho Testamento.


E porque o Velho Testamento liga solidamente a santidade à lei, e a lei está preocupada com a vida diária, o resultado foi o que Henri Hauser chamou de “secularização da santidade”, i.e., a santidade foi feita matéria da vida diária para todos os crentes.  A santidade agora era um objetivo de todos os cristãos. Isto era, nas palavras de Luthy, uma “insistência na vida santificada como objetivo de todos os crentes.” (Herbert Luthy, "Variations on a Theme by Max Weber," in Prestwich, p. 381) Calvino disse de Lucas 6:35 que é nosso dever fazer o bem sem fazer nada em troca; nós devemos exercitar uma bondade nobre, não mercenária, por termos recebido graça, nós deveríamos portanto manifestar graça. (Calvin: Harmony of the Evangelists, I, p. 302f.)


Nós temos um fato notável aqui na reforma que Calvino promoveu em Genebra. Ela era uma cidade corretamente chamada em seus dias de “paraíso das mulheres”. Este é um aspecto da Reforma para o qual foi dada atenção insuficiente.  A razão é que essas reformas nas leis civis e eclesiais que fizeram Genebra tão notável em seus dias estão agora associadas ao “patriarcalismo”, e patriarcado é uma palavra odiada pela feministas (tanto as de saias quanto as de calças). Ela sugere uma visão de opressão masculina, dominação e regra. Ela tornou-se símbolo de males passados e presentes.


O fato significante, entretanto, é que aquele “patriarcalismo” não era centrado no homem, mas centrado na governança da fé e da família. Homens modernos na família atomística comumente têm maior poder, se eles escolherem exercê-lo, do que tinham os homens “patriarcais”. A razão é muito clara: o “homem patriarcal” era um administrador do passado para o futuro. Em I Reis 21, nós vemos que Nabote não sentiu que ele tinha o direito de vender as terras da família, não importasse quanto dinheiro o rei Acabe oferecesse. A terra não era sua exceto como uma confiança de seus antepassados para os não-nascidos. 


O apelo da vida existencial é que ele limita todo o poder e direito ao momento presente. O “homem existencial(ista)” não vê responsabilidade para com o passado ou para com o futuro, nem para com qualquer coisa momentânea que não seja seu desejo e vontade. É por isso que, dada qualquer oportunidade, o "homem existencial” é sempre tirânico e opressivo: ele fará o que fará com a segurança de não incorrer em nenhum julgamento imediato. Tanto o poder quanto o “direito” são limitados ao momento e à sua vontade. O que não acontece com o “homem patriarcal”. Ele é ligado a responsabilidades, à família e a outras pessoas. Sua esposa é sua parceira e vice-gerente nas responsabilidades e ambos precisam estar orientados em direção ao futuro. 

O feminismo, como o machismo, são existencialistas e orientados em direção ao presente. Não têm qualquer senso de comunidade ou de harmonia de interesses. Tanto feministas quanto machistas acreditam que existe uma guerra dos sexos e saem para vencer essa guerra.  Como bons darwinistas, eles acreditam na sobrevivência do mais apto numa guerra cósmica pela sobrevivência. Desde que o universo não tem lei ou moralidade em sua fé, os mais aptos são simplesmente os sobreviventes,  aqueles cuja radical ausência de raízes e preocupação por moralidade os habilita para sobreviver.
Para todas essas pessoas, o patriarcado é uma armadilha, porque ele pressupõe, a despeito da Queda e da depravação humana, a sumidade e triunfo da Lei de Deus. O universo é então um universo moral. Como Débora declara em sua canção, “Até mesmo as estrelas lutaram! Deixaram as suas órbitas para pelejarem contra Sísera.” (Juízes 5:20)

Uma cultura bíblica, "patriarcal", vê o conflito essencial da vida como um conflito moral, não um conflito pessoal. Como estudante, eu escutei um professor, não favorável ao “patriarcalismo”, chamar sua característica principal de hospitalidade, e abertura para as pessoas. Ele citou como reveladoras a resposta de Abraão aos três estranhos: ele convidou-os a compartilhar seu sal e sua vida. (Gênesis 18)

O atomismo social moderno, contudo, vê todos os homens como inimigos e transforma o mundo em um lugar hostil. Classe é colocada contra classe, e raça contra raça. Woodrow Wilson, eleito presidente dos EUA, enquanto estudante de Princeton, compartilhou o ódio de estudantes contra jovens da cidade, chamados de “esnobes” em Princeton, e escreveu, “Nós ainda precisaremos matar alguns daqueles esnobes antes que eles aprendam a ter prudência.” (Jonathan Daniels, "Woodrow Wilson's Pious Young," in The New Republic, October 29,1966, p. 28; vol. 155, no. 18.) Wilson, é claro, não tinha qualquer plano de assassinato, mas ele gostava de pensar nesses termos.  Não surpreendentemente, ele ajudou a avançar a causa do conflito de classes.  Mesmo que ele sonhasse com um mundo tornado seguro pela democracia, ele avançou as divisões sociais com seu pensamento.

A cultura bíblica, "patriarcal", é agora muito desprezada por aqueles que, como humanistas, odeiam soluções morais. Para eles, nossos problemas não devem ser diagnosticados como rebelião contra Cristo e contra a Lei de Deus,  mas como um problema de conflitos econômicos, tensões entre classes, e condicionamentos sociológicos de uma natureza regressiva e sociopática. Calvino é pra eles um símbolo de respostas ruins, e um livro recente vê Calvino essencialmente como um homem “doente”! O livro fala-nos mais sobre o autor do que sobre Calvino.

Citei em certa ocasião, numa preleção, o trabalho do bispo St. Charles Borromeo, cujo trabalho era “dar dotes de matrimônio para garotas sem dinheiro cujo destino de outra maneira seria as ruas,” e ainda a pensionatos para pessoas de ruas em seus dias, orfanatos, uma casa para ex-prostitutas, e uma casa para mulheres casadas desventuradas. (Margaret Yeo: Reformer: St. Charles Borromeo, pp. 115, 228f. Milwaukee, Wisconsin: Bruce, 1938.) A resposta às vezes é fria. Problemas “sociais”, muitos afirmam, deveriam ser administrados pelo estado, não por “amadores”.

Quando nós despersonalizamos os problemas de homens e mulheres, nós também despersonalizamos a nós mesmos. Reduzimos as pessoas a cifras matemáticas cujas respostas estão nos atos do Congresso ou do Parlamento. Nós negamos Cristo e o Cristianismo em favor do estado e seus assistentes sociais. Borromeu em Milão e Calvino em Genebra deram-nos outra resposta.

Mas para muitos hoje, Genebra não poderia ser o “paraíso das mulheres”. Afinal, Genebra não tinha nenhuma Emenda de Direitos Iguais! Paulo nos diz, entretanto, que “Onde está o Espírito, aí há Liberdade.” (II Cor 3:17), e este é o Espírito que nos deu a Lei e os Evangelhos. Se nós não buscamos nossas respostas no Senhor e em Sua Palavra, nós somos parte do problema.
 
Rushdoony, Roots of Reconstrution, p. 407.